Flavio Cruz

Um pedaço do céu, um ateu e a Dona Zulmira

Quem colocaria numa cidade o nome de “Pedaço do Céu”? Pois bem, entre tantos nomes estranhos, pelo menos esse era auspicioso. Diria, até, apropriado.  Por ser pequena, muito pequena, talvez devesse ser “pedacinho”, mas aí entrou um pouquinho de vaidade e o diminutivo ficou de lado. Não sei se por causa do destino, ou de fatores sociológicos, ou até mesmo antropológicos, o fato é que o nome tinha tudo a ver. Não havia em toda a cidade, uma só pessoa que não frequentasse a igreja. Além do Centro Espírita, que certamente deve ser contado, havia pelo menos mais quatro igrejas com sede e tudo mais. O Centro ainda não tinha um templo, tudo era feito na casa do “seu” Joseval. O homem tinha mesmo aquele olhar distante e calmo, de quem sabe o que há no porvir. De quem conhece o outro lado da existência.
 Embora não houvesse grandes contendas metafísicas, vez ou outra, uma contenda filosófica ou teológica, aumentava um pouco a tensão. Fora isso, era uma harmonia só. Até o horário oficial dos cultos, da missa e da sessão espírita, era sincronizado. Ninguém, acho, queria ser pego de surpresa por um concorrente de fé.
Foi por isso que, quando o professor Carlos chegou, a população ficou meio desconfiada. Aquele homem calmo, cheio de paz e certamente muita sabedoria, seria uma aquisição e tanto para qualquer rebanho. Para frustração de todos, logo ficou-se sabendo – o que não se sabe em um lugar tão pequeno? – que o professor não tinha religião nenhuma. Era ateu.  O vigário – não se sabe por quê – achou melhor chamá-lo de agnóstico. Não deu muitas explicações para o palavreado estranho. Espero que eu não seja excomungado por isso dizer, mas acho que ele estava com segundas intenções. Aquela palavra parecia mais pesada e certamente os seus fiéis ficariam com mais medo.
O fato é que o homem era muito inteligente e culto.  Certamente ninguém queria entrar em um debate com ele, embora sua simplicidade e modéstia fossem óbvias. Passado algum tempo, as pessoas foram se acostumando com o fato de que um “agnóstico” não é um bicho-papão. Quase todos. A Dona Zulmira e suas comadres, que ficaram muito impressionadas com a inusitada alcunha, resolveram continuar sua campanha. Aquela era uma pessoa perigosa, ainda mais ensinando nossas crianças. O que se pode esperar de alguém que não acredita em Deus? Pior mesmo foi quando ela começou a falar que o demônio tem muitos truques. Às vezes veste uma máscara de bondade, de fraternidade, de paz e até de sabedoria. E aí é que estava o perigo. A maior parte das pessoas não levava isso a sério, mas, lá no fundo, muitos, inclusive seus alunos, passaram a olhar para o rosto do professor de um jeito diferente. Começaram a ver, escondido atrás daquela face sadia e honesta, o rosto do tinhoso. É uma coisa do inconsciente. Claro, ninguém tinha certeza. Alguns, porém, até tinham medo.  Essas coisas são assim, pessoas fanáticas podem destruir o mundo.
O professor Carlos, com muito jeito e paciência, foi levando sua vida. Era até bom não ter muita interação com algumas pessoas. Podia ter seu “retiro”, podia observar a natureza. Ele gostava muito disso. Dava passeios longos, às vezes a pé, às vezes de bicicleta. O lugar para o qual ele mais gostava de ir, era, ironicamente, o “Monte do Santo”. Uma pequena elevação, de onde se podia ver a pequena cidade, o “pedaço de céu”, se espalhando pela paisagem. Ao redor, três estradas que ligavam aquela pequena população com o resto do mundo. O pôr de sol e o amanhecer eram, desculpem o jogo de palavras, divinos, vistos dali.
Era um domingo ao anoitecer. O professor tinha acabado de subir o pequeno monte, que, aliás, era praticamente na beira da cidade. Admirava o final do dia. O sol ainda podia ser visto lá do outro lado, mas sombras já se espalhavam pelas casas, pelos pequenos prédios. A cidade não era muito iluminada e, por isso, cinco lugares se destacavam por ter um pouco mais de luz. Havia a luz da igreja católica, a luz de uma igreja protestante tradicional, a luz de duas igrejas avivadas e, finalmente, a luz do Centro Espírita. Se Carlos resolvesse se converter, não seria pela força da luz que vinha das congregações. Ali, do alto do morro, todas pareciam fracas e iguais. Era, no entanto, uma paisagem bonita. Ele estava satisfeito. De repente, porém, viu uma luz nova, diferente, que, depois de começar pequena, começou a aumentar. Se ele tivesse um só pouquinho de fé, poderia ver aí um milagre, um sinal divino. Mais uma nova religião, dessa vez, a certa. Mas aquele seu pensamento científico não deixava margem para imaginação. Em poucos minutos tirou uma conclusão lógica. Um incêndio estava começando. Ele sabia que ninguém viria socorrer, ajudar. Estavam todos bem no meio das orações, dos pedidos. Sabia que estava sozinho na empreitada. Pegou a bicicleta, desceu como um raio pela ladeira, aproveitou o impulso e “voou” pela rua deserta. Era uma casa de esquina, e, pasmem vocês, era a casa da Dona Zulmira. O mestre sabia que ele não conseguiria combater o incêndio, pois não havia mangueiras, nem água suficiente, nem nada. Raciocinou, porém, que, embora fosse improvável, poderia haver alguém lá dentro. Deu um pontapé na porta e entrou correndo, gritando. Foi aí que ouviu o choro de um garoto. Era o Mindinho, neto da Dona Zulmira, de oito anos. Não tinha se sentido bem, a avó o havia deixado em casa, na cama. Carlos pegou o menino nos braços e correu para fora. Foi até o vizinho, abriu a torneira do jardim e umedeceu o corpo do garoto, Ele estava com algumas pequenas queimaduras, mas estava salvo. Ficou com o garoto no colo, olhando para o fogo que punha um vermelho sinistro nas faces dos dois. Dali a pouco escutou carros buzinando. Vários. Começaram a estacionar. Várias pessoas correram em direção à casa. Mas daí todos paravam, duas paredes já tinham caído e o telhado pendia quase até chão na direção delas. Era uma fogueira só. Foi aí que ele ouviu os gritos desesperados da Dona Zulmira. Ela havia acabado de chegar e estava enlouquecida, gritando com todos os pulmões:
Meu netinho, meu netinho! Alguém socorre meu Mindinho!
Alguém veio junto a ela e segurou-a pelo braço. Era óbvio, nada podia ser feito.
Enquanto isso, o professor ateu foi andando apressadamente, no meio das pessoas, em direção a ela. Bateu em seu ombro, dizendo:
 -Dona Zulmira, seu neto está aqui. Ele está bem, só tem umas queimadurinhas.
O alívio que aquela mulher sentiu não está em lugar nenhum da Bíblia e em nenhum outro livro qualquer. Com o neto em seus braços, olhou então para o rosto vermelho – pelo reflexo do fogo – do professor. Em circunstâncias normais, seria um sinistro rosto do diabo, ardendo com o fogo do inferno. Mas o que ela viu, foi outra coisa. Um anjo, bonito, cheio de luz, uma luz branca que alumiava toda a cidade. Foi o único anjo de verdade que ela viu em toda a sua vida. E daí ela entendeu porque o professor não tinha religião. Ele não precisava, ele tinha vindo direto do céu. Tinha vindo para salvar o seu netinho.

Todos los derechos pertenecen a su autor. Ha sido publicado en e-Stories.org a solicitud de Flavio Cruz.
Publicado en e-Stories.org el 01.04.2015.

 
 

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