Flavio Cruz

Uma cidade chamada "Céu Estrelado"

Estavam todos dormindo na pequena vila quando se ouviu um som surdo, grave. Demorou uns dois ou três minutos. Ninguém sabia o que era, mas todo mundo acordou e ouviu. Entretanto ninguém se preocupou em levantar e verificar o ocorrido. Quase todas as pessoas tiveram a mesma ideia: se é algum problema, alguém vai lá ajudar. Sempre alguém ajuda. Só de manhã que todos ficaram sabendo da coisa ruim. O “seu” Valério foi o primeiro, depois a “dona” Saméria. Os outros, praticamente todo mundo, vieram logo a seguir, quando esses dois primeiros saíram correndo para dar a notícia.
Um grande, profundo e assustador buraco, havia aparecido bem no meio da praça. Engoliu, sem cerimônia, o coreto, os bancos ao redor, a estátua do fundador da cidade, as árvores, tudo. Só parou na frente da igreja. Foi assim que pela frente não dava para entrar. O padre conseguiu fazê-lo pelos fundos, numa porta que era um acesso para a sacristia.
Diante de tão grande tragédia, o sacerdote esperava que os fiéis viessem para a missa, de tal forma que pudessem iniciar a negociação com Deus para resolver aquela profundidade de problema. A fé não era tanta assim e todo mundo ficou com medo do resto desmoronar e levar a igreja junto, com eles lá dentro. Nem as beatas mais fervorosas arriscaram. É nessa hora que a gente vê a fé verdadeira. Mas quem sou eu para criticar? Não sei o que eu mesmo faria numa situação dessas.
Começaram as especulações. Coisa da geografia, movimentação de terra, lençóis de água e tudo mais... Muitas teorias, além daquelas que não são tão científicas, como uma maldição antiga, coisa do demo. O Vigário, com certeza, sabia que aquilo estava relacionado com a degradação dos costumes, o adultério que se alastrava como erva daninha pela cidade. Mas não era coisa de Deus, não. Aquilo era coisa do maligno, explicou. Todo mundo podia perceber que o danado parou bem em frente do edifício sagrado. Ali o chefe das trevas não tinha chance, precisou parar. Alguém tinha dúvida? Estava escrito com todas as letras, era só ler a mensagem. O “seu” Isidoro não entendeu direito pois não conseguia ver nada escrito em lugar nenhum.  A única coisa que ele via era aquela cratera enorme. Quando explicaram para ele que aquilo era uma metáfora, daí ele se perdeu de vez. Existe gente que é mesmo exibida, como você vai querer que alguém que não entendeu algo tão simples, vá saber o que significa “metáfora”? É explicar uma coisa difícil com outra mais difícil ainda.
O prefeito, ao contrário do que se esperava, não quis enumerar as prováveis  causas. Disse que teria de haver um estudo. Mas o que o preocupava mesmo era que aquilo era uma chateação. Aquela coisa grotesca bem no meio da paisagem urbana. Se fosse na periferia, numa vila qualquer, tudo bem. Talvez fosse até bom. Podia dar emprego, movimentava a administração. Ele poderia dar uma de eficiente, de pai de todos, aquele que ajuda quem precisa. Mas ali, no coração de tudo, a um bloco da sede da prefeitura, aquilo era uma indignação. E o pior que o maldito era profundo e de tal forma construído – melhor dizer, “desconstruído” – que não se via onde terminava. Parecia mesmo uma coisa de outro mundo, em todos os sentidos que esta expressão tem. Alguém sugeriu jogar todo o lixo da cidade ali, até encher o danado. Mas depois, e com razão, alguém argumentou que não ficaria bem ter um lixão bem ali na praça, e ainda mais, na frente da igreja. Encher aquilo tudo com terra e pedras, ia dar um trabalho monstruoso, além de custar um dinheirão. Coisa que a cidade não tinha e que certamente o governo estadual não iria dar, tal era a crise econômica em toda a nação.
Assim foi que a solução do problema, se é que ela existia, foi adiada por tempo indeterminado. O prefeito tinha esperança de que, pelo menos, alguns turistas aparecessem e trouxessem alguma ajuda econômica para o seu governo. Que nada, ninguém estava interessado em buracos.
Claro, a mando da prefeitura, foi colocada uma cerca ao redor, para evitar um mal maior, se é que é possível um mal ser maior ainda. Mesmo sem poder mais ver claramente o fundo do buraco – assustador – ninguém conseguia deixar de pensar nele. Os habitantes não só pensavam, sonhavam também com o dito cujo. Cada um com seu sonho, um mais esquisito do que o outro. Depois de algum tempo, alguns sonhos começaram a se repetir, e as pessoas começaram a sonhar sonhos parecidos e até iguais. Aquilo parecia uma comoção coletiva. Um dos mais comuns – e até dá para entender – era de que máquinas e caminhões trabalhavam intensamente para encher a cratera. Alguns já sonhavam com a coisa pronta. Uma praça novinha em folha, com uma bandinha tocando no coreto.
Sonhar é bom.
Eles foram ficando cada vez mais intensos e cada vez mais parecidos. Deve haver alguma explicação. Tenho certeza de que os psicólogos e os psiquiatras sabem exatamente o porquê disso tudo.
Finalmente, numa noite de sábado, houve um grande sonho. Todos, sem exceção, sonharam exatamente a mesma coisa. Foi um sonho coletivo, de fato. E era assim: no domingo de manhã, escutaram uma linda marchinha sendo tocada por uma banda, impecável, vestida de branco e usando dragonas cor de ouro. A música era irresistível. Todos se levantaram, puseram a melhor roupa que tinham e se dirigiram para a praça. O padre insistia que todos deveriam primeiro ir à missa – nunca mais ninguém tinha ido à missa – e depois assistir a banda. Mas, como foi explicado, a música era irresistível e mesmo o pároco acabou indo para lá, na esperança de todos depois irem para a cerimônia eclesiástica, assim que a apresentação musical terminasse. E era uma coisa linda. As notas penetravam nos ouvidos, na alma. As pessoas quase se sentiam culpadas de se sentirem tão felizes. Neste sonho, o buraco não estava mais lá. Uma praça elegante, cheia de árvores e bancos. Os músicos, sublimes, como se fossem anjos, tocavam, tocavam...
Mas veja você, o que de fato aconteceu. Por isso que alguns dizem que sonhar é perigoso. Daquele, ninguém nunca mais acordou. O que aconteceu, na verdade, é que, sonâmbulos, levantaram-se de suas camas e, enganados por aquela música fatal, que não era real, dirigiram –se para o grande buraco, pensando que era a nova praça. Foram todos, sem exceção, caindo, caindo. Acho que a sensação de êxtase veio de quando eles estavam pairando no ar, antes de chegar ao fundo. Digo isto porque sempre há uma relação entre o que a gente sonha e o mundo exterior, verdadeiro, aquele que nos cerca. Aquela sensação divina que eles sentiam, com aquela banda tocando como se fossem anjos... Não sei, talvez eles estivessem indo para o céu e tivessem confundido a banda com os anjos. Mas aí já estamos entrando numa área complicada, de filosofia, de metafísica.
O fato é que todo mundo morreu com a queda, pois a altura era realmente muito grande. Uma coisa que não dá nem para pensar, a cidade toda, sonâmbula, se jogando naquele abismo, pensando numa onírica e festiva banda. Não sobrou ninguém para contar o que aconteceu para as autoridades estaduais e federais quando eles chegaram para examinar a tragédia. Nenhum corpo foi recuperado, devido à profundidade.
Não sei o que aconteceu depois. Parece que o buraco foi se enchendo de água com o tempo, até virar um lago. Ninguém vai lá porque é perigoso e profundo. Está cercado e é tudo proibido.
O nome da cidade era “Céu Estrelado”.  Pena que não tenha sobrado ninguém, pois iria perguntar a origem desse nome. Como é que escolheram essas palavras, etc. Isso é interessante, gosto de saber. A origem dos nomes é simbólica, pode trazer luz para os fatos. Às vezes é só um nome, nada mais. Mas, como dizem, não sobrou ninguém para contar a história, assim não se sabe o porquê de “Céu Estrelado”.

Todos los derechos pertenecen a su autor. Ha sido publicado en e-Stories.org a solicitud de Flavio Cruz.
Publicado en e-Stories.org el 09.04.2015.

 
 

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